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Percepção marcial.

Imagem de pessoa meditando
Todo tipo de arte é um sistema de expressão por representação. Eu insisto nessa afirmação por considerar de extrema importância a compreensão de que um artista marcial não deve se transformar em um espelho, eco ou figurante. Copiar, refletir, repetir ou atuar não são características de um artista marcial.

Dito isso, entenda que a percepção marcial é a ferramenta fundamental para se construir uma "personalidade" própria capaz de servir como instrumento de representação da arte.
Ao praticar uma arte marcial, precisamos compreender que a técnica é um "mecanismo" tradutor que nos permite absorver o conceito-base da arte de forma experimental. Ou seja, absorvemos o conceito da arte através da experiência do exercício da técnica. No entanto, para que seja possível compreender o que está sendo de fato oferecido, é necessário que tenhamos a percepção aguçada para ver além da técnica e de seus movimentos. A técnica nos permite alcançar a arte, mas sem a percepção não seremos capazes de reconhecer o que estamos aprendendo.
Percepção é a capacidade de perceber. Mas perceber o que? 

Um artista marcial quando se dedica aos treinos e principalmente aos ensinamentos filosóficos oferecidos pela arte e pela interação com seus companheiros, expande seus níveis de percepção marcial de forma natural para que possa fazer uso dessa característica durante a execução de suas ações, seja em combate ou em situações corriqueiras. No entanto, para que esse alto grau de percepção seja realmente eficiente, é necessário que seja compreendido e reconhecido como uma capacidade e não como uma técnica.
A técnica pode ser racionalizada, compreendida por seus aspectos de movimentação e efeito, calibrada através da repetição e estudo de posições; um kata pode ser estudado por sua forma, sua base, sua construção.
Já a percepção marcial, por ser uma capacidade, se for racionalizada deixa de ser eficiente, pois torna-se limitada. A razão tende a seguir padrões que se limitam pela organização das informações e isso impede a absorção de informações não quantificáveis que são justamente o que alimenta a percepção.
Por exemplo, as vezes estamos em algum lugar e sem nenhum motivo olhamos para fora no exato momento que um conhecido está passando. Mesmo que eu não seja capaz de explicar essa situação de forma clara e objetiva, posso afirmar que esse tipo de "coincidência" só acontece nos momentos em que nossa mente não está focada em algum assunto específico. Ou seja, a percepção carece de liberdade de concentração. Se eu não estou concentrado, torno-me perceptivo. Da mesma forma, se decido me dedicar a perceber o momento exato que um conhecido passará pela rua, estou me concentrando na capacidade de perceber e isso faz com que eu racionalize a capacidade e com certeza eu não serei capaz de perceber nada, e provavelmente irei me enganar muitas vezes com pensamentos ilusórios. 
A percepção não pode ser racionalizada, pois ao tentar fazer isso, a mente irá determinar padrões e referências baseados em informações reais. Querer usar a percepção dentro das limitações do racional é algo impossível justamente pelo fato de que teríamos de ser capazes de prever o futuro para que nossa mente aceitasse a variável "possibilidade de perceber" como uma diretriz aceitável e real para tal raciocínio. No entanto, se eu pudesse prever o futuro, que importância ou finalidade teria a percepção? 

Eis então que surge a grande dificuldade; como exercitar a percepção marcial sem colocá-la em nível de razão ao mesmo tempo que a escolha de praticar é racional? 

Novamente a solução está no Fudoshin!
Veja bem, se a percepção é uma capacidade que necessita na ausência de concentração, quanto menos nos deixarmos influenciar pelas questões que exercitam nossa mente, mais perceptíveis iremos nos tornar. A arte pode nos servir de apoio nessa questão se nos dedicarmos a ela de forma plena, aceitando a postura de aprendizado sincero e interessado. Ao nos dedicarmos de forma plena, deixamos de lado os questionamentos que podem surgir mediante a algum conteúdo que inicialmente nos cause curiosidades fora do contexto, avaliações precipitadas e dúvidas quanto à efetividade do que estamos em estágio de aprendizado. Ou seja, ao nos "entregarmos" plenamente aos ensinamentos da arte, estaremos exercitando o Fudoshin e de bônus estaremos nossa percepção.
Isso pode parecer que estamos abandonando nossa personalidade e nossa capacidade de compreensão, mas entenda que em determinado momento do treinamento, o desenvolvimento só será alcançado se acreditarmos no que estamos fazendo e por mais que a racionalidade seja nossa maior característica, todo questionamento representa dúvida, logo, quando exercitamos nossa razão produzindo dúvidas, estamos privando nossa percepção de ser aprimorada, pois não estamos acreditando no que estamos fazendo.
É verdade que nenhum praticante é obrigado a entrar nesse tipo de condicionamento. No entanto, quando a resposta para o texto anterior for relacionada ao desenvolvimento, aprimoramento e transcendência, a percepção será uma capacidade fundamental e por tanto deverá ser praticada. 

No Ninjutsu, a graduação do 4° para o 5° Dan acontece pelo Saki teste e esse é um momento onde se faz necessária uma profunda conexão que é bem mais fácil se houver uma boa percepção durante o exame. Sendo assim, os praticantes de Ninjutsu que desejam alcançar altos níveis dentro da arte, exercitar a percepção é fundamental. 

Além disso um artista marcial age conforme se conecta com o meio onde se encontra através da percepção aguçada e refinada, e, da mesma forma, influi sua postura e sua conduta ao meio como uma referência de equilíbrio.
Enquanto a técnica é a conduta física capaz de afetar o exterior, a percepção é a aplicação sutil da influência marcial interior tão capaz quanto a técnica de afetar o meio. Ou seja, através da percepção, sentida e aplicada, é possível causar os efeitos de uma técnica sem realizar a técnica física.
Impossível? Místico? Sobrenatural? Não! 

A percepção é genuína do ser humano. Uma mãe interpreta as necessidades de seu bebê sem que ele diga uma palavra, amigos são capazes de "dizer" frases inteiras apenas com olhares, amantes se declaram e se sentem com um toque... Percepção é conexão!

Fazemos isso todos os dias e nossa capacidade de perceber só diminuiu por sermos tão apaixonados pelo banal, pelo fútil, por coisas... Nossa percepção, assim como todos nossos instintos, foi modificada e permanece nublada por nos tornamos cada vez mais "produtos da sociedade".
Outro exemplo, você caminha pela rua e vê alguém suspeito vindo em sua direção. Imediatamente seu coração dispara e uma porção de pensamentos negativos surge na sua mente como se você fosse capaz de prever um futuro terrível. A sociedade nos adestrou a nomear esse efeito com a palavra "medo". Você sente a ameaça através da percepção. Mas se você é um artista marcial, se pode contar com treinamento físico e psicológico, vai filtrar a possível ameaça (que inclusive pode não ser) e quando seu coração disparar, ao invés de chamar de medo, você irá compreender que são apenas seus instintos aguçando seus sentidos, seu cérebro liberando adrenalina e seu coração oxigenando seu sangue para que você possa agir adequadamente nessa situação.

Sim, é muito difícil despertar a capacidade de influência apenas pela percepção, é muito difícil causar os efeitos de uma técnica apenas pela intenção, mas é por isso que praticamos primeiro as técnicas, pois é através da prática da técnica e do verdadeiro interesse em evoluir que a percepção é aflorada e restaurada dentro de nós.

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