Vamos falar um
pouco sobre o propósito da arte.
Se você leu o
texto anterior (O lado racional.), deve ter percebido que a décima figura do
diagrama que representa a evolução da técnica durante os processos de
treinamento está vazia. A figura vazia representa a ausência de técnica, que
nesse contexto não é sinônimo de inexistência, mas sim de máxima amplitude.
Eu sei que
parece contraditório, mas pense assim; imagine que você possua um oráculo capaz
de responder todas as perguntas do universo. Aos poucos você questiona sobre
tudo e a cada nova resposta sua mente raciocina perguntas cada vez mais
complexas. Depois de alguns anos você literalmente já sabe de tudo. Não existe
nenhum mistério, todas as questões foram respondidas. Qual a única coisa que
você não vai ter?
Quando você
souber todas as respostas do universo, a única coisa que jamais conseguirá
produzir são perguntas. Não por ser incapaz de perguntar, mas por já conhecer
todas as respostas.
Com a arte é a
mesma situação. Em determinado momento, depois de muito treino e muito
refinamento, a arte será de forma tão absoluta em você que a técnica se tornará
ausente. Ela existirá em uma totalidade tão ampla e profunda que irá se fundir
com você numa espécie de simbiose plena. A técnica será ausente quando não
houver mais possibilidades de haver uma divisão entre o que é a representação
da arte e a sua própria conduta. Você será a técnica!
Vamos complicar
um pouco.
Inversamente, a
arte está para conduta assim como a técnica está para conceito e dentro da
técnica estão os preceitos da arte. Ou seja, a técnica é um
"mecanismo" para inserir a arte através da interpretação subjetiva
dos sentidos diante da metafísica dos processos de aprendizagem.
A arte é
inserida no praticante através da prática da técnica, mas a arte não está na
técnica, a arte está nos "espaços" que a técnica desbloqueia
liberando potencial. A técnica semeia a arte.
No entanto, não
podemos considerar que essa "ausência de técnica" represente
conhecimento absoluto da arte. Na verdade, atingir esse ponto é semelhante com
alcançar a faixa preta dentro de um processo de graduação; é apenas mais um
estágio cheio de aprendizado.
Tente
compreender que a arte é o subjetivo e a técnica é o físico. Vamos considerar
isso como dois planos: no plano físico, treinamos as técnicas que servem para
ajudar nossa compreensão sobre o plano subjetivo que é a arte. O plano físico
só é necessário enquanto houverem necessidades de acesso ao plano subjetivo. É
aquela questão de que "a colher não existe". O plano físico não pode
mudar o plano subjetivo por ser simplesmente um caminho, você precisa passar
por ele para alcançar o objetivo final, mas não é o caminho que re modifica e
sim a experiência de passar por ele. A técnica te leva até a arte, mas é o
treinamento que te transforma em um artista.
Quando você
perceber isso, vai compreender que na verdade a técnica não existe. O que
existe é um sistema capaz de ser absorvido de forma racional sem que dele
possam surgir bloqueios capazes de impedir seu desenvolvimento. Seria
impossível absorver a arte por pura escolha, nossa mente jamais permitiria que
o conteúdo da arte fosse inserido em nossa consciência sem que houvesse um
significado plausível aos sentidos. Nós somos criaturas dependentes de sentido.
É por isso que um praticante no início do treinamento não consegue assimilar a
movimentação e a ação de um shihan, por exemplo, a mente desse aluno não
consegue viabilizar a realidade que está presenciando por ela não ser adaptável
aos sentidos sem treinamento.
Você já parou
para pensar no que significa "real"?
Imagine que você
e outras 99 pessoas estão em uma sala observando uma parede pintada. Aquelas 99
pessoas dizem que a parede está pintada de vermelho, mas você é daltônico e por
isso vê a parede pintada de verde. Existe algum argumento que aquelas 99
pessoas possam usar para mudar a cor que você vê? Não!
A realidade é
aquilo que você absorve do lado de fora do que você é. Mas para ser real, é
preciso que os seus sentidos sejam capazes de absorver a informação. A parede
vai continuar sendo verde para você mesmo que ela esteja de fato pintada de
vermelho.
Pois bem, se a
realidade é uma resposta dos sentidos, você precisa que a técnica te permita
uma interpretação aceitável para que a arte tenha onde ser inserida.
Então, não há
razões para você tentar se adiantar no processo. Não adianta tentar absorver
conteúdo avançado quando se está iniciando o treinamento. Você não precisa se
frustrar quando não conseguir reproduzir algo que foi demonstrado, nem deve se
diminuir quando não entender nada do que foi proposto em uma aula de nível
elevado. Tentar absorver o que você não é capaz de compreender só vai gerar
confusão e incredulidade. Arte marcial é paciência!
Só existe uma
coisa que você pode fazer quando não for capaz de assimilar um conteúdo
avançado; estar presente. Mesmo que nada possa ser compreendido, estar presente
e participar é se permitir vivenciar possibilidades, e possibilidades ficam
registradas até que encontrem um lugar para fazer sentido. Por isso, continue
treinando, esteja presente nas oportunidades que surgirem e não se cobre além
do que deve ser apenas empenho. A arte vai se abrigar em você se você continuar
no caminho que leva até ela.
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