A maior batalha do guerreiro é travada em
seu interior, pois o grande inimigo do homem, é o próprio homem.
Vamos falar
sobre o ego. Prometo que não vou escrever cem páginas sobre o tema, mas entenda
que a argumentação que se segue está condicionada e limitada a um ponto muito
especifico.
Definição
rápida; ego é uma das três subdivisões da nossa personalidade responsável por
harmonizar nossas vontades, nossos desejos mais primitivos e nossos impulsos
(Id) com os códigos da moral, responsabilidade e valores conservadores
(superego) dentro do nosso ser. O ego é a parte de nós que se conecta com a
realidade filtrando o que entra e o que sai de nossa consciência. O ego é o
defensor da personalidade.
Muito bem, sob o
meu ponto de vista, como vivemos em tempos de paz, o lugar-comum das artes
marciais é o aprimoramento do indivíduo. Ainda que tenhamos objetivos diversos
durante a jornada, lá adiante iremos todos compreender o quão melhores nos
tornamos como pessoas pela prática, pelo empenho e pela constância. Já que
vivemos em tempos de paz, não existe a necessidade de sermos criados e educados
desde o berço com os conceitos, as filosofias e as disciplinas das artes
marciais, o que acaba por nos permitir um desenvolvimento de forma
absolutamente indiferente para com o que decidimos introduzir em nossas vidas
em algum momento. O que significa que cada um é uma pessoa antes de se tornar
um praticante.
Por
consequência, os processos de aprimoramento pessoal nos fazem confrontar a arte
com uma personalidade já formada, logo, o ego que é o defensor da nossa
personalidade irá se tornar um obstáculo interno contra a nossa transformação.
Mas entenda, o ego não possui vontade própria, ele funciona como uma ferramenta
que se alto-elaborou com um propósito definido e que irá cumprir seu papel independentemente
do quão ameaçado possa ser. Ao mesmo tempo, o ego como parte de nós que nos
conecta com a realidade, é o Eu interior dentro de cada um, sendo assim, para
que eu consiga causar qualquer modificação no meu ego é necessário que eu me
modifique. É por isso que a grande batalha que enfrentamos é interna.
Desde o
nascimento, todos os nossos sentidos começam a absorver informações que serão
armazenadas e ponderadas gradativamente por grau de importância. Todas essas
informações serão responsáveis pela formulação da nossa personalidade, nosso
comportamento, nossas opiniões, preferências... tudo aquilo que for subjetivo.
Ao passo que nos desenvolvemos e nos tornamos indivíduos conscientes sobre nós
mesmos, um tipo de "blindagem espelhada" toma partido em nossa
personalidade e reflete o Eu que eu imagino e desejo para fora mim. Ou seja, Eu
sou aquilo que reconheço ser. Sempre que essa projeção for confrontada, meu
defensor - o ego - irá buscar nos arquivos da minha personalidade qualquer tipo
de argumento que ou possa me defender, ou distorcer aquilo que não condiz com o
que penso sobre mim mesmo.
Então você
decide se tornar um praticante de artes marciais. Escolhe por conta própria
iniciar um longo percurso de aprimoramento sem efetivamente
"contabilizar" o quão transformadores serão esses processos. Nesse
momento, tudo se resume ao interesse; uma vontade avaliada e motivada pelas
informações que se somaram resultando na escolha. Mas transformar-se é algo
muito mais complexo do que uma decisão.
Lembre-se, o seu
ego irá defender sua estrutura interna de todas as formas, o seu Eu interior é
um Eu subjetivo, uma projeção, ele não é o Eu dentro da realidade. E quando
você começa a lapidar a si mesmo, quando começa a enfrentar dificuldades
naturais de toda transformação, é função do ego te convencer que aquela foi uma
decisão precipitada. Cada novo desafio será interpretado como um obstáculo para
o seu conforto e mesmo que possa nascer em você ainda mais motivação para
prosseguir, lentamente irão se acumular motivos para desistir. Esses motivos
são exteriorizados inicialmente como um senso de preservação que não suporta a
dor, mesmo que uma dor pequena, depois como cansaço e preguiça disfarçados de
falta de estímulo, mais tarde o estresse físico e psicológico por conta de uma
sensação de pobreza de resultados e por fim como contrariedade. Se você
consegue vencer a dor e a preguiça, o ego tende a te fazer questionar se tudo
aquilo realmente vale a pena e como argumentos de confronto, a sua blindagem
interna começa a refletir os outros com muito mais brilho do que você e isso te
frustra. Muitos desistem aqui.
Aqueles que
conseguem ultrapassar essas etapas, precisam enfrentar outra investida do ego.
Se tentar te convencer que a prática não está te fazendo bem não for
suficiente, o ego tentará te sugerir que você na verdade não precisa praticar,
pois você já é superior a todas as possibilidades que aquela jornada é capaz de
te oferecer. Então você começa a se engrandecer dentro da arte. Passa a se
considerar superior, dotado de uma interpretação tão profunda sobre tudo, que
insistir na prática escalonada e lenta seria apenas perda de tempo e desgaste físico.
Alguns param de treinar exatamente aqui, outros se corrompem de tal forma que
seria melhor que tivessem parado.
Pense assim; seu ego é o firewall do seu sistema. Toda novidade será classificada como um vírus
em potencial e antes que seja instalada deve ser verificada. Se uma novidade
exige grandes transformações para fazer parte de você ela será considerada como
um vírus prejudicial e vai direto para a quarentena. Se você tentar forçar,
janelas cheias de aviso surgem para te convencer do contrário.
Difícil? Calma,
é só o começo.
Até aqui o ego
está apenas cumprindo seu papel e tentando te manter em uma zona de conforto
contra toda transformação que a pratica de artes marciais oferece. No entanto,
em algum momento, dedicando-se, treinando com instrutores sérios e perseverando
treino a treino, a arte irá conquistar um espaço dentro de você e tais
conflitos serão vencidos. A partir daqui o seu desenvolvimento é
extraordinário, pois a arte foi morar na sua consciência e de lá ela terá influência interna no seu ser. Os desafios, as dificuldades, a necessidade de
empenho e constância... tudo se mantém, mas tudo realmente te transforma e te
permite enxergar a imagem com um tanto mais de amplitude. Eis que o ego retorna
como um inimigo capaz de arruinar tudo.
Faça o seguinte;
aí dentro da privacidade dos seus pensamentos responda: Quem é você?
Mesmo daqui eu
posso garantir que mais de 80% dos argumentos que você usa para se definir são
na verdade reflexos de você nos outros.
E acredite, não
é só você, 99% das pessoas se define assim. E isso acontece pelo fato de que o
Eu que faz parte da realidade é um Eu de representação do Eu subjetivo. Você é
aquilo que tem consciência de ser, mas a sua consciência é formada pelas
informações que você absorve, ou seja, o que te define é o que você causa. Por
exemplo, um alguém que se diz engraçado; para que essa pessoa se considere de
tal forma é necessário que os outros estejam sempre sorrindo ao redor. Essa
classificação não se dá por conta de uma percepção sobre si mesmo, mas sobre
como a pessoa dita engraçada se reflete nas outras pessoas. Mas será que todas
as outras pessoas do mundo irão pensar a mesma coisa? Será que ele será
engraçado para bilhões de pessoas? Seguramente que não. Na verdade,
contabilizando o todo, é bem provável que apenas uma parte muito pequena de
pessoas possa oferecer esse feedback "classificador", mas ninguém de
define dizendo "para alguns eu sou engraçado, mas para outros eu sou
apenas um idiota".
O ego é
caprichoso, somente características e argumentos favoráveis são aceitos. É confortável
adotar uma definição legal sobre nós mesmos, mesmo que com baixíssimo índice de
comprovação. E sabe o que mais motiva isso? A comprovação.
Sabe aquela
coisa de "massagem no ego"? É isso. Se 99 pessoas dizem "você
não é engraçado" e apenas 1 diz que sim, aquela única pessoa terá o prestigio
de 100%. "Ela está certa pois me agrada que esteja"!
Quando isso acontece
dentro da pratica de uma arte - e acontece muito - é muito triste. As vezes o
praticante é dotado de inúmeras capacidades, mas se torna tão apaixonado por si
mesmo que se esquece que seu desenvolvimento é fruto da pratica e não algo genuíno
de si. Algumas pessoas reconhecem uma zona de conforto fictícia por receberem
elogios e se olharem no espelho com orgulho excessivo e se sujeitam ao risco de
perder tudo que conquistaram por se deixarem vencer pelas investidas de um ego
inflado e vaidoso. Essa é a última "tentação" antes da metamorfose
realmente significativa, mas ela é forte, muito forte.
Me diga, quem
vence uma batalha de si consigo mesmo?
Pense comigo; o
Eu interno é um eu de projeção, o Eu que eu quero ser no mundo. O Eu no mundo
(realidade) é um eu de representação, criado a partir de reflexos. Algum dos
dois é real? Algum dos dois realmente existe? Ou ambos são apenas formas de eu
reafirmar minha existência como resultado imperativo do meu ser?
O lugar-comum de
toda arte marcial é a transcendência; uma excelência que está acima do que o Eu
é capaz de conceber. Transcender é ir além, é alcançar um nível superior, é se
libertar da projeção e da representação, é resetar.
Quanto dá (-1) +
(+1)?
Saiba desapegar da primeira pessoa!
"Tudo que é sólido se desmancha no ar". Marshall Berman.
Comentários
Postar um comentário