Há alguns anos um livro fez muito sucesso pelo mundo todo ao tratar dos benefícios de se acreditar fortemente na realização de seus desejos e vontades. Como toda autoajuda o discurso do livro gera uma interpretação de conexão genérica que facilita muito a fixação do conceito proposto, mas nós, praticantes de artes marciais temos de tomar cuidado com esse tipo de eloquência.
É bem verdade que a força do querer nos permite alcançar certos objetivos, mas ao tratarmos de uma arte, onde o subliminar possui extrema importância, o querer nos ilude, nos corrompe e nos priva do real desenvolvimento, pois o querer é uma invocação do ego. O “eu quero eu posso” é o mantra do aprendizado superficial e nós devemos evitar isso uma vez que as grandes dádivas do aprendizado são mais profundas.
Sendo assim, vamos partir do princípio de que toda iniciativa que tiver como base o querer está fadada ao atraso. E isso vale tanto para o discurso, para o pensamento e para a vontade. Não faz diferença se é uma frase dita com o eu quero, uma ideia genuína que se oriunda do eu quero ou uma vontade pessoal que se respalda no eu quero; o querer é superfície e os resultados serão igualmente frágeis e efêmeros. Ou seja, tenha sinceridade ao se livrar desse conceito.
O kyojitsu do eu quero se mantém através da decisão baseada na vontade; surge em nós uma vontade que se manifesta através de ações, postura e decisões que tendem a nos fazer acreditar em possíveis resultados por corresponder às nossas expectativas iniciais. No entanto, o grande aprendizado surge pela prática; é a experiência que nos ensina e isso pode ser comprovado com o passar do tempo ao fazermos uma avaliação das mudanças que sofremos no decorrer do treinamento. A grande questão é que se nos deixamos convencer por resultados superficiais, o tempo que levamos para o despertar é consideravelmente maior. Isso acontece pelo fato de abandonarmos o empenho sobre circunstâncias que acreditamos já terem sido conquistadas, quando na verdade ainda falta muito para ser realmente absorvido. O problema em se convencer por resultados superficiais é que criamos vícios de comportamento e técnica que mais tarde irão dificultar ainda mais a real mudança que teremos de fazer. Esses vícios não são apenas de movimentação, percepção e atitude, modificar vícios físicos é fácil, o difícil de verdade é modificar vícios mentais. E é aqui que a coisa se complica.
A pior parte do kyojitsu do eu quero está na forma como tudo se estabelece dentro da nossa mente. A arte marcial passa a fazer parte de nós como se fosse uma nova capacidade que absorvemos com a prática. Se nos deixamos convencer pelo kyojitsu do eu quero, ao invés de capacidade o que temos e uma “programação” nova, ou seja, uma nova forma de processar as informações que absorvemos. Nós literalmente passamos a sofrer um adestramento controlado e isso é terrível. Sim, adestramento: você recebe as técnicas em uma apostila, demonstra todas elas em um exame e se fizer tudo certinho recebe uma graduação como recompensa. Mas do que vale ser graduado sem ter aprendido, só ensaiado?
Todo e qualquer aprendizado que surge de um ambiente controlado servirá apenas dentro das condições exclusivas do ambiente em questão. E qual o lado negativo disso? A técnica não irá funcionar em uma situação real. Pense assim: você passou anos ensinando seu cachorro a buscar a bolinha, um dia você joga um tijolo; o cachorro vai sair correndo atrás para buscá-lo?
É a mesma coisa com a técnica se todo o conteúdo for absorvido como um adestramento, tudo irá funcionar apenas dentro do dojo, com uke na posição adequada, com a orientação adequada e com a decisão de ação orientada. Isso não é aprendizado!
O aprendizado artístico marcial não surge pela vontade, não importa o quão insistente seja essa vontade, nem quão focada seja essa vontade. É como musculação: pensar fortemente que é possível levantar 200 quilos no primeiro dia de academia não é suficiente para tirar os 200 quilos do chão. Querer intensamente que os músculos estejam enormes depois de uma semana de academia também não e suficiente para transformar um corpo magro em um corpo musculoso em apenas em 7 dias. Por mais que a vontade e o querer possam nos motivar, os resultados não surgem como efeito positivista mental. Não é assim que as coisas funcionam. Mas perceba como é fácil se confundir sobre isso quando o assunto é uma arte marcial; nós podemos aprender muitas coisas de forma superficial e passar anos desempenhando técnicas dentro do ambiente controlado do dojo sem perceber que estamos apenas “buscando a bolinha”, podemos receber graduações, podemos nos tornar referência, ter conteúdo para transmitir e sermos capazes de demonstrar muitas coisas, mas tudo de forma teatral, tudo em níveis superficiais sem o real entendimento. Mais tarde, quando a realidade nos cobra alguma atitude, nada funciona e ficamos frustrados. O que acontece? Culpamos a arte. Dizemos que é a arte que não é eficiente e paramos de treinar. Mas para saber se o que “sabemos” é superficial ou real precisamos de uma experiência fora do dojo? Não, o que precisamos é de discernimento honesto sobre nós mesmos.
Veja bem, tudo aquilo que é pensado sem ser sentido é superficial. Só você é capaz de saber o que você sente e é por isso que a questão aqui envolve kyojitsu.
Kyojitsu não é uma mentira ou ilusão simplesmente. Não se trata de algo manipulado superficialmente como uma fofoca, está mais para um ilusionismo; primeiro cria-se uma atmosfera propícia ao engano, depois usa-se elementos que se conectam com a falta de atenção e por fim a ação é cometida preenchendo as lacunas permitidas por quem será enganado, mas o ponto alto do ilusionismo é que a plateia quer ser iludida, elas pagaram o ingresso do show para serem enganadas. O kyojitsu do eu quero age em nós como uma ilusão que nós mesmos criamos e deixamos preencher aquelas expectativas superficiais que a vontade estabelece dentro de nós mesmos. E isso acontece por querermos que seja assim. É uma sabotagem pessoal que fazemos por sermos inseguros e carentes de resultado. E veja como é triste; você se convence de que é capaz por querer muito ser capaz e se contenta com qualquer resultado mesmo que lá no fundo saiba que tudo é irreal, que tudo é ilusão, que tudo é apenas um kyojitsu. E sim, você sabe que é uma ilusão, tanto que sente-se necessário de comprovação constante para que reforce os elementos do seu próprio engano. Você questiona de forma que as respostas sejam correspondentes à sua ilusão, você dá exemplos que reforçam a sua ilusão, você defende seus argumentos com egoísmo e orgulho e você se demonstra cheio de insegurança para que os outros te façam elogios motivacionais que não merece, mas que te agradam por massagear seu ego. É muito triste.
Por fim, tenha em mente o seguinte: não é fácil, nunca será fácil e vai demorar muito. Se você tentar diminuir a jornada se deixando iludir, tudo será ainda mais difícil e demorado. Você está se tornando um artista marcial, não caia na tentação do querer, nem se deixe convencer pelo que é superficial. Os benefícios são imensuráveis, mas se não houver verdade no que você está fazendo, tudo será um enorme kyojitsu.
As duas palavras fundamentais são: paciência e sinceridade. Ou você exercita as duas, ou você será como um cachorro correndo atrás da bolinha; é legal e divertido, mas só isso.
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