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Artes marciais e o autodesenvolvimento.

self made man de Bobbie Carlyle autodesenvolvimento
Self Made Man - Bobbie Carlyle

Acredite, em algum momento você vai sentir a necessidade de mudança!

É curioso como nos adaptamos aos acontecimentos da vida como se fossem uma inércia incontrolável que nos leva de um momento a outro por intermédio das escolhas que nos afetam. Sejam escolhas nossas, ou escolhas alheias que nos tocam de alguma forma, tudo que experimentamos é resultado de um complexo emaranhado de decisões, cada uma com um universo inteiro de possibilidades e consequências inesperadas. Ainda que sejamos capazes de avaliar as repercussões, o que acontece entre o momento presente e o momento futuro é puro mistério. Nossas projeções não criam realidades, elas apenas nos fazem reconhecer os padrões por trás da mecânica da ação = reação. Mesmo que por efeitos de contrariedade, quase sempre consideramos as repercussões demasiadamente inferiores às projeções. Isso ocorre por sermos erroneamente mais interessados na essência do que na existência, ou seja, oferecemos crédito àquilo que desejamos com maior importância do que aquilo que realmente temos. Passamos mais tempo buscando do que aproveitando!

No entanto, vez ou outra somos pegos de surpresa pela sensação de angústia e como resposta natural a este sentimento, voltamos nosso olhar para nós mesmos e reconhecemos um interesse latente em transformar nossas vidas em algo mais agradável e satisfatório do que a simples inércia que nos aprisiona. Ao fazer isso de forma verdadeira, entendemos que é hora de enfrentar nossos medos e buscar a transcendência que possa nos permitir uma qualidade de vida superior. Um ponto importante sobre isso é que esse desejo nos surge espontaneamente, mas não por acaso. A real necessidade de transcendência surge apenas como consequência de um incômodo real. Nem toda angústia nos inspira mudanças, mas o desejo de mudar é um reflexo da angústia.

Existem inúmeras teorias, receitas e programas que nos oferecem métodos e comportamentos como uma resposta à tais necessidade, mas basta um momento de clareza para compreender que todas elas, todas essas soluções, não passam de discursos genéricos de adestramento ineficaz. Cada indivíduo é exclusivo, se algo genérico fosse capaz de realmente mudar alguma coisa o mundo seria uma utopia. O único ponto em comum entre todas essas fantasias motivacionais é que todas elas negligenciam uma das maiores verdades do ser humano; nós todos possuímos sombras dentro de nós.
Ninguém é absolutamente bom, existe uma parte de nós que é dor, sofrimento, violência, pensamentos negativos, desejos nefastos... E isso é absolutamente natural e importante. Ser bom não significa ser livre de maldade, significa fazer o bem mesmo quando se poderia fazer o mal. Ser bom também é uma escolha.
Sendo assim, transcender não significa tirar de nós a sombra que existe em nosso íntimo, mas entender essa sombra, compreender que ela faz parte de nós e que é justamente por ela que determinamos nosso senso de responsabilidade

Nós não podemos nos enganar pensando que o altruísmo e a compaixão são características límpidas que surgem em seres iluminados. Ninguém jamais será capaz de compreender e se mobilizar em nome das necessidades alheias antes de ter vencido as suas próprias. Não basta apenas exercitar o desapego e ter amor ao próximo, isso é politicagem, o que realmente precisamos é absorver a certeza de que a busca pela transformação é uma batalha diária, cansativa e muitas vezes frustrante que exige de nós a resiliência absoluta antes de nos brindar com os benefícios da transcendência. E é aqui que todas as falsas soluções se desfazem! Enaltecer e valorizar tudo de bom que há em você irá sim te preencher de satisfação por algum tempo, mas cedo ou tarde tudo aquilo que há de ruim e que foi desprezado durante o processo por ser considerado algo que só existe nos outros e que você é apenas uma vítima, surge com força suficiente para absorver toda luz que iluminava seu caminho. Olhe em volta e você verá exemplos aos montes de pessoas "iluminadas" sendo vencidas por suas próprias sombras.

Pois bem, e como as artes marciais podem ajudar nesses processos de autodesenvolvimento?

É importante compreender que o autodesenvolvimento é algo simples - basta escolher e saberemos o caminho a seguir - mas não é fácil. Somos filhos de uma sociedade que faz de tudo para evitar encarar seus próprios medos. Tudo que existe ao nosso redor, existe para nos oferecer conforto, mesmo que superficialmente; consumismo, diversão fútil, programas semanais de banalidades, filmes e novelas com uma realidade inexistente, bebidas, drogas, políticas de comportamento irresponsável, redes sociais repletas de hipocrisia... Uma infinidade de elementos de manipulação que aprendemos a assumir com naturalidade para que não nos espantemos com o potencial inútil do ser humano. Não existe nada que nos prepare para o confronto contra nossas fraquezas, pois somos criados para ter uma falsa sensação de controle. Por conta desses fatores, quando iniciamos uma jornada de autodesenvolvimento primeiramente analisamos nossas boas qualidades e delas construímos nosso suporte, depois embarcamos na busca pelo conhecimento, mas optamos por temas que já estão relacionados com nossa própria vida, buscamos e absorvemos coisas simples, o que as vezes demonstra que não estamos verdadeiramente empenhados. Por fim, corremos o enorme risco de acreditar que já nos transformamos de forma incrível e ao nos deparar com o inevitável choque de realidade que nos apresenta nossas fraquezas, medos, traumas, conflitos internos variados... Optamos por tentar abafar isso, como se nosso "lado negro" pudesse ser vencido por pura negação. Mas não, na verdade, quanto mais tentarmos bloquear as sombras, maiores elas se tornam e é muito fácil ser derrotado por elas com uma profunda depressão.

As artes marciais durante o processo de autodesenvolvimento são auxílios de extrema importância para nos fortalecer e nos preparar para os atritos internos que certamente irão surgir. Diferente de qualquer outro "suporte", uma arte marcial não te inspira a bloquear seu lado obscuro, na verdade toda arte marcial traz à tona suas fraquezas para que você consiga se acostumar com elas gradativamente ao mesmo tempo em que te oferece respaldo para resolvê-las.

Antigamente, as artes marciais tinham como objetivo instruir e preparar guerreiros para o campo de batalha. Hoje, por outro lado, as artes marciais se adaptaram para fortalecer e equipar o indivíduo para um combate interno, oferecendo um tipo de consciência que torna o praticante em alguém mais introspectivo e assim mais consciente de si mesmo. Ao iniciar a jornada de autodesenvolvimento, somos constantemente apresentados ao que realmente precisamos encarar; nossas falhas e fraquezas. Eis uma honesta iniciativa de mudança; se desejamos uma transformação em nossas vidas, precisamos mudar o que é ruim, não o que é bom. Sendo assim, qual o sentido de uma autoajuda que visa apenas enaltecer nossas qualidades? Que tipo de transformação pode ocorrer ao valorizarmos apenas o que já fazemos bem?

"Qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos." Carl Jung

Sim, você vai sofrer durante os processos, mas entenda que nenhuma transformação acontece sem sofrimento. Afinal, mudar significa extrair algo de nós e acrescentar algo no lugar. Vai ser difícil, vai ser cansativo, vai ser frustrante, longo e pesado, mas os resultados sempre transformam a jornada em uma experiência válida. A humanidade está cheia de registros históricos que relatam o quão sofrida foi a vida daqueles que alcançaram níveis superiores de existência. Qual a mensagem que todos eles deixaram nas entrelinhas de seu tempo e que ecoam até hoje?

Sim, vale a pena iniciar essa jornada de autodesenvolvimento, mas convenhamos que ninguém deseja sofrer em demasia. Sendo assim, é de extrema ajuda encarar os desafios com o respaldo de uma arte marcial, pois sendo inevitável o atrito, nada melhor do que uma armadura para nos proteger. Uma armadura construída por nós mesmos, preparada para encarar nosso maior algoz. Você sabe quem!

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